top of page
Buscar

Ar(tes)

  • Foto do escritor: Izabelle Fernandes
    Izabelle Fernandes
  • 5 de jun.
  • 2 min de leitura

[Compartilho, aqui, um conto que escrevi em 19/08/2024 e do qual me lembrei diante das tristes notícias de colegas que perderam suas vidas no exercício de sua profissão, sobre o chão de escolas. Desejo força às famílias.]


Marcos cerrou os dentes e prendeu a respiração, como se tentasse equiparar os espaços não rasurados do papel almaço ao pulmão cheio de palavras. Precisava passar naquele concurso. Aos 50 anos, só assim para quitar o apartamento e se aposentar com algum conforto. 


Tivesse ouvido os conselhos de seu pai — refletia sempre que acometido por uma crise de meia idade — não estaria amargurando tamanha pindaíba. Onde já se viu? A inflação torando e o jovem, forjado em pão de mel e biotônico comprados com cruzados, cruzeiros e centavos contados, prestava vestibular para artes visuais. Artes! E visuais! “Pobre tem que ter o pé no chão!” — repetia, em vão, seu Aldair — “Beleza não põe mesa!” Dona Irene fazia que sim com a cabeça, mas seu olhar terno sobre o ainda garoto deixava escapar um orgulho de professora primária que aguentava a rotina nas salas de casa e de aula nutrindo sonhos alheios. Ela até tentou aconselhar o filho a migrar para a engenharia, mas não teve jeito. Ainda pequenino, eram as minúcias do dia a dia que o apeteciam: as formas dos insetos que visitavam as lições de matemática, um céu meio rosado de fim de tarde pós recreio, uma mesma faixa da fita cassete em looping só pelo deleite de acompanhar as notas de contrabaixo ao fundo. Essa sina de artista lhe rendeu vinte e sete anos pulando de hora/aula em hora/aula. 


Ultimamente, de vez em quando se pegava pensando que esse concurso poderia ser a solução de suas dores. Só precisava se concentrar e respirar fundo diante de 5 dissertativas, mas seu peito teimava em pesar. E a caneta trêmula que acompanhava o temor de se atrasar no atual emprego indicava menos as respostas esperadas pela banca e mais uma habitual propensão ao desespero. Não à toa, lembrou-se do dia em que quase se afogou em pleno Arpoador. Devia ter uns 12 anos e foi engolido pelas ondas enquanto fitava as borbulhas que se desfaziam ao baterem nas pedras. Não fosse um bombeiro, Marcos nem sobreviveria para contar história... e prestar o concurso. 


Passadas 4 horas, as folhas brancas viraram um oceano de pensamentos escritos e rabiscados. As linhas e margens desapareceram. As mãos, encharcadas de suor, mal conseguiam reorganizar as páginas espalhadas sobre uma familiar carteira que só costuma ver de cima em suas andanças professorais. Restaram trinta minutos... e quinze... e... cinco. Marcos apertou o coração, afundou a caneta em um ponto final num canto qualquer dos papéis empilhados... e suspirou. Fim.

Comentários


Mas meus versos esperam no papel, 
Louvando-te, vencer a mão cruel” 

(William Shakespeare- tradução de Ivo Barroso)

© Izabelle Fernandes

bottom of page